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Infância

Autor

J.M. Coetzee

Editora

Companhia das Letras

Tradução

Luiz Roberto Mendes Gonçalves

Dizer tudo e não significar nada

“... Quando ele se cansa de segurar o caneco (os tosquiadores podem tirar os feijões sozinhos, são homens do campo e nunca ouviram falar em desonestidade), ele e o irmão ajudam a encher os fardos, pulando sobre a massa de lã grossa, quente e oleosa. Sua prima Agnes também está lá, veio de Skipperskloof. Ela e a irmã se juntam a eles, e os quatro caem uns sobre os outros, rindo e saltando como se estivessem numa enorme cama de plumas.

Agnes ocupa um lugar em sua vida que ele ainda não compreende. Viu-a pela primeira vez quando ele tinha sete anos. Convidados a Skipperskloof, chegaram num fim de tarde depois da longa jornada de trem. Nuvens cobriam o céu, o sol não aquecia. Sob a luz fria de inverno, a vasta savana era de um azul escuro e arroxeado, sem vestígios de verde. Até a casa da fazenda parecia inóspita: um austero retângulo branco com telhado de zinco íngreme. Não parecia em nada com Voëlfontein; ele não queria ficar ali.

Poucos meses mais velha que ele, Agnes foi designada sua companheira. Ela o levou para dar uma volta na savana. Foi descalça; nem mesmo possuía sapatos. Logo estavam no meio do nada e perderam a casa de vista. Começaram a conversar. Ela usava maria-chiquinha e tinha língua presa, o que lhe agradou. Ele perdeu a timidez. Ao falar, esqueceu qual língua estava usando: os pensamentos simplesmente se transformavam em palavras, palavras transparentes.

O que ele disse a Agnes naquela tarde, já não pode lembrar. Mas disse-lhe tudo, tudo mesmo, tudo o que sabia, tudo o que desejava. Ela ouviu tudo em silêncio. E enquanto ele falava, sabia que o dia era especial por causa dela.

O sol começou a cair, de um púrpura incendiado, mas gélido. As nuvens escureceram, o vento se fortaleceu e atravessava suas roupas. Agnes usava apenas um vestido fino de algodão; seus pés estavam azulados de frio.

"Onde vocês estavam? O que andaram fazendo?", perguntaram os adultos quando voltaram à casa. "Niks nie", Agnes respondeu. Nada.“

Dizer nada e significar tudo

“... É uma manhã quente de verão. O ar está parado, tão parado que se pode escutar os pardais pipilando lá fora, suas asas abanando. As venezianas estão fechadas, as cortinas baixas. Há um cheiro de suor de homem. Na obscuridade ele enxerga o pai deitado na cama. Do fundo de sua garganta sai um ronco suave quando ele respira.

Ele se aproxima. Seus olhos estão se habituando a luz. O pai está com a calça do pijama e uma camiseta de algodão. Não se barbeou. Há um "V” avermelhado no pescoço dele onde o bronzeado dá lugar à brancura do peito. Ao lado da cama há um penico onde pontas de cigarro boiam na urina amarronzada. Ele nunca viu nada mais feio em toda a vida.

Não há comprimidos. O homem não está morrendo, simplesmente dorme. Ele não tem coragem de tomar os comprimidos, assim como não tem coragem de sair e procurar trabalho.

Desde o dia em que o pai voltou da guerra eles brigaram, numa segunda guerra que o pai não tinha chance alguma de vencer porque jamais teria imaginado um inimigo to impiedoso e tenaz. Durante sete anos aquela guerra se intensificou; hoje ele triunfou. Sente-se como o soldado russo no Portão de Brandemburgo, erguendo a bandeira vermelha sobre as ruínas de Berlim.

Mas ao mesmo tempo ele gostaria de não estar ali, testemunhando aquela vergonha. No é justo!, ele tem vontade de gritar. Sou apenas uma criança! Gostaria que alguém, uma mulher, o tomasse nos braços e curasse suas feridas, o reconfortasse, lhe dissesse que fora apenas um pesadelo Pensa no rosto da avó, macio e fresco, seco como seda, oferecendo-se para que ele o beije Gostaria que a avó pudesse chegar e consertar tudo.

Uma bola de catarro se forma na garganta do pai. Ele tosse e vira-se de lado. Seus olhos se abrem, os olhos de um homem totalmente consciente, que sabe exatamente onde está. Os olhos o fixam, parado ali, onde não deveria estar, espionando. Os olhos não emitem julgamento, mas tampouco bondade.

As mãos do homem descem preguiçosamente e arrumam a calça do pijama.

Ele espera que o homem diga alguma coisa, “Que horas são?”, para facilitar as coisas. Mas o homem nada diz. Os olhos continuam a fitá-lo, pacificamente, distantes. Então se fecham, e ele adormece novamente.“

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J.M. Coetzee

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Companhia das Letras

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Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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Design e mentoria por Victor Luna

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