Kafka à beira-mar
Autor
Haruki Murakami
Editora
Alfaguara
Tradução
Leiko Gotoda
A biblioteca mágica
“... Os dois caminharam até o mar. Cruzaram o bosque de pinheiros, passaram sobre o quebra-mar e desceram à areia da praia. As ondas do Mar Interno eram suaves. Os dois se sentaram lado a lado na areia e permaneceram em silêncio por um longo tempo, apenas contemplando as ondas miúdas que se erguiam como beira de lençol e rebentavam logo em seguida com um suave marulhar. Havia também algumas ilhas visíveis em alto-mar. Os dois homens não se cansavam de contemplar a paisagem marítima, pois ela não fazia parte do cotidiano deles.
— Senhor Hoshino — disse Nakata.
— Hum?
— Que coisa linda é o mar, não?
— Realmente. Olhar para ele acalma o espírito.
— E por que será que olhar para o mar acalma o espírito?
— Talvez porque ele é grande e não tem nada sobre ele — disse o rapaz, apontando o mar alto. — Aposto que não teria um efeito tão calmante se houvesse uma loja de jogos eletrônicos naquele ponto e um enorme painel anunciando Casa de Penhores Yoshikawa. É simplesmente fantástico não ter nada até onde a vista alcança.
— É verdade, Nakata acha que é isso mesmo — disse o velho homem, calando-se em seguida por alguns instantes. — Senhor Hoshino.
— Hum?
— Posso fazer uma pergunta boba?
— Faça, ora.
— O que tem no fundo do mar?
— No fundo do mar tem um mundo marítimo, e nele vivem diversas coisas como peixes, moluscos e algas. Você nunca foi a um aquário?
— Nakata nunca esteve em nenhum lugar chamado a-quá-ri-o. Lá em Matsumoto, onde Nakata sempre morou, não tinha a-quá-ri-o.
— Acredito que não, mesmo. Matsumoto fica no meio das montanhas. Na melhor das hipóteses, teria um museu especializado em cogumelos — comentou o rapaz. — Seja como for, existe muita coisa no fundo do mar. A maioria respira o oxigênio que extrai da água. É por isso que esses seres conseguem viver mesmo num ambiente sem ar. São seres diferentes de nós. Alguns são bonitos, outros parecem apetitosos e muitos são nojentos ou perigosos. É difícil descrever o fundo do mar para uma pessoa que nunca o viu porque é um mundo à parte, totalmente diferente do nosso. O sol quase não alcança as regiões mais profundas. E nelas vivem os seres mais esquisitos. Escute, Nakata, quando essa confusão toda terminar, vamos juntos visitar um aquário. Faz muito tempo que eu também não vou, e é um lugar muito divertido. Deve haver algum aqui em Takamatsu, já que é cidade litorânea.
— Sim senhor. Nakata gostaria muito de ir a um a-quá-ri-o. “
Por que a floresta é um labirinto?
“... — E, como já disse antes, tome muito cuidado quando entrar na floresta. Se você perder o caminho, jamais encontrará a saída.
— Vou tomar todo cuidado.
— Pouco antes do começo da Segunda Guerra Mundial, um batalhão da Infantaria do Exército Imperial andou realizando manobras em grande escala nesta região. Os militares se preparavam para enfrentar o exército soviético nas selvas siberianas. Falei disso a você, não falei?
— Não — respondo.
— Pelo jeito, tenho o péssimo hábito de não mencionar coisas importantes — diz Oshima, tocando várias vezes a própria têmpora com a ponta do indicador.
— Mas esta floresta não se parece nada com as siberianas…
— Concordo. Esta floresta tem árvores de folhas largas e as siberianas são compostas por coníferas. Mas acho que o exército não estava se importando muito com detalhes. O objetivo dos militares era treinar situações de guerra e de deslocamento de tropas no interior de qualquer floresta densa.
Ele vira a garrafa térmica e despeja numa xícara um pouco do café que fiz para ele, acrescenta um nada de açúcar e toma com expressão deliciada.
— Meu bisavô atendeu à solicitação dos militares e cedeu-lhes a floresta. Estejam à vontade, ele disse. A montanha não estava sendo usada para nada mesmo, entende? As tropas chegaram a pé pelo caminho que viemos e penetraram na floresta. As manobras terminaram alguns dias depois mas, quando fizeram a chamada geral, deram por falta de dois soldados. Uniformizados e carregando toda a parafernália militar, eles tinham desaparecido no interior da floresta durante o treinamento. Eram ambos recrutas recém-alistados. O exército promoveu uma busca em grande escala, claro, mas os dois nunca mais foram vistos.
Oshima toma mais um gole do café.
— Até hoje não se sabe se os dois se perderam na floresta ou se desertaram. A floresta desta região é densa e dentro dela não há muita coisa comestível.
Aceno a cabeça para mostrar que entendi.
— Existe um mundo paralelo, contíguo a este em que vivemos. Você é capaz de entrar nele até um certo ponto. É também capaz de voltar de lá são e salvo. Contanto que esteja atento. Mas uma vez transposto certo ponto, nunca mais será capaz de voltar. Não vai mais achar o caminho. É um labirinto. Sabe de onde surgiu a ideia do labirinto?
Sacudo a cabeça negando.
— Por tudo que nos foi dado a conhecer, a idéia foi inicialmente concebida pelos habitantes da antiga Mesopotâmia. Eles costumavam extrair o intestino dos animais — pode ser que também de seres humanos, às vezes — e prever o futuro de acordo com sua forma. Além de tudo, louvavam a complexidade dessa forma. Pois o intestino é o modelo do labirinto. Ou seja, o arquétipo do labirinto está dentro do nosso próprio corpo. E interage com formas labirínticas externas.
— Uma metáfora — comento.
— Isso mesmo. Metáfora recíproca. O que existe externamente é uma projeção do que existe em você, e o que existe em você é a projeção do que existe externamente. Assim sendo, muitas vezes, ao pôr um pé no labirinto externo, você está pondo um pé no labirinto existente em você. E isso, na maioria das vezes, é muito perigoso.
— Como João e Maria entrando na floresta.
— Isso mesmo. Como João e Maria. A floresta prepara uma armadilha. Por mais que você se cuide e use de artifícios, pássaros de olhar aguçado encontram os farelos sinalizadores e os comem.
— Vou me cuidar — eu digo. “
Por que as lembranças ficam no acervo como numa biblioteca?
“... — Todos nós perdemos coisas preciosas ao longo da vida — diz ele quando enfim o telefone pára de tocar. — Oportunidades ou possibilidades importantes, emoções que nunca mais experimentaremos. Esse é um dos significados da vida. Mas dentro de nossas mentes — eu ao menos acho que é dentro das mentes — existe um pequeno aposento destinado a guardar tais preciosidades na forma de lembranças. Deve ser um aposento semelhante àquele em que guardamos o acervo desta biblioteca. E para sabermos a exata situação de nossa alma, temos de fabricar continuamente novos cartões de referência. Temos de varrer o aposento, de arejá-lo, de trocar a água dos vasos de flores. Em outras palavras, você vai viver para sempre dentro de sua própria biblioteca. “