Sul da fronteira, oeste do sol
Autor
Haruki Murakami
Editora
Alfaguara
Tradução
Rita Kohl
Num bar, um coquetel, uma conversa e jazz
“... Shimamoto estendeu a mão e tocou bem de leve a minha, sobre o balcão.
— Mas que bom que você é feliz!
Fiquei calado.
— Você é feliz, não é?
— Não sei bem se sou feliz. Mas pelo menos acho que não sou infeliz nem solitário — falei. E acrescentei depois de um momento:
— Mas de vez em quando, por um motivo qualquer, eu me pergunto se aquelas horas que passamos ouvindo música juntos na sala da sua casa não foram as mais felizes da minha vida.
— Tenho aqueles discos até hoje, sabia? Nat King Cole, Bing Crosby, Rossini, Peer Gynt, todos eles, não falta nenhum. Quando meu pai morreu, fiquei com os discos como recordação. A gente escutava com tanto cuidado que eles não têm risco nenhum. Você lembra o jeito que eu mexia neles?
— Então seu pai faleceu?
— Há cinco anos, de câncer no reto. Um jeito terrível de morrer. Era um homem tão saudável…
— E sua mãe está bem? — perguntei.
— Sim, deve estar.
Alguma coisa no seu tom de voz me intrigou.
— Você não se dá muito bem com ela?
Shimamoto terminou o daiquiri, pousou o copo no balcão e chamou o barman.
Então me perguntou:
— Tem algum coquetel que você recomenda?
— Temos alguns coquetéis originais da casa. O mais popular tem o nome do bar, Robin’s Nest. Fui eu que inventei. A base é rum e vodca. É fácil de tomar, mas é forte.
— Deve ser bom pra seduzir mulheres.
— Talvez você não saiba, Shimamoto, mas é só pra isso que existem os coquetéis.
Ela riu.
— Bom, então vou querer um desses. Quando o coquetel chegou, ela observou sua cor por um tempo, depois sorveu um gole, fechou os olhos e deixou que o sabor se espalhasse pelo seu corpo.
— É muito delicado — disse ela. — Não é doce, mas também não queima. Um sabor simples e leve, mas bem encorpado. Não sabia que você tinha esse talento.
— Não sou capaz de construir nem uma prateleira. Não sei trocar o filtro de óleo do carro. Não consigo nem colar um selo sem ficar torto. Volta e meia disco os números errados no telefone. Mas criei alguns coquetéis que são bem elogiados!
Ela apoiou o coquetel sobre o porta-copos e passou um tempo espiando seu interior. Inclinou o copo, agitando o reflexo da iluminação indireta do teto. “
Face sem rosto
“... E então, quando ergui os olhos, me deparei com o rosto de Izumi. Ela estava dentro de um táxi parado à minha frente. Da janela do banco traseiro, fitava diretamente meu rosto. O táxi estava esperando o sinal abrir e o rosto de Izumi estava a apenas um metro de mim. Ela já não era uma menina de dezesseis anos, mas soube que aquela mulher era Izumi assim que pousei os olhos nela. Não poderia ser mais ninguém. Era a mulher que eu tivera em meus braços vinte anos antes. A primeira mulher que beijei na vida. Que despi em uma tarde de outono, aos dezessete anos, quando ela perdeu um dos prendedores da cinta. Vinte anos podem mudar muito uma pessoa, mas eu não deixaria de reconhecer seu rosto. Tinham me dito que Izumi causava medo às crianças. Quando ouvi isso, não consegui entender o que queriam dizer, o que estavam tentando me comunicar com essas palavras. Mas agora, diante dela, compreendia claramente o que meu colega tinha falado. O rosto dela não tinha expressão alguma. Quer dizer, não era exatamente isso. O correto seria dizer que toda e qualquer coisa que pudesse ser chamada de expressão havia sido arrancada de seu rosto. Olhar para ele me fez pensar em uma casa da qual tivessem sido levados absolutamente todos os móveis. Seu rosto não tinha nem uma migalha de emoção. Tudo nele era inerte e mudo, como o fundo abissal do mar. Ela me encarava com aquele rosto desprovido de emoção. Pelo menos, acho que estava me olhando. Seus olhos estavam voltados diretamente para mim. Mas sua face não me dizia nada. Se havia em seu rosto alguma mensagem, era um vazio sem fim.
As palavras me abandonaram e fiquei ali, aturdido. Tudo o que eu conseguia fazer era me manter em pé, com esforço, e respirar devagar. Naquele momento eu estivesse me dissolvendo em um lodo. Sem conseguir pensar em nada, de forma quase inconsciente, estendi o braço e toquei o vidro da janela. Meus dedos o acariciaram de leve. Não sei qual foi o propósito dessa ação. Alguns transeuntes pararam para me olhar, surpresos. Mas não pude conter esse gesto. Acariciei devagar, pela janela, a face sem rosto de Izumi. Mesmo assim, ela não moveu um músculo. Sequer piscou. Será que estava morta? Não, não estava. Estava viva, e não piscava. Naquele mundo silencioso, do outro lado do vidro, ela estava viva. E seus lábios imóveis narravam um nada infinito.
Eventualmente, o sinal ficou verde e o táxi foi embora. O rosto de Izumi permaneceu inexpressivo até o fim. Fiquei parado ali, vendo o táxi ser tragado pelo mar de automóveis até desaparecer. “