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Nada a temer

Autor

Julian Barnes

Editora

Rocco

Tradução

Léa Viveiros de Castro

São os cínicos na hora da morte, amém

“... Se eu fosse um escritor, escreveu Montaigne – embora não fique claro se ele se considerava mais ou menos do que um –, "eu criaria um compêndio sobre as diferentes maneiras de que um homem tem de morrer. (Qualquer pessoa que ensinasse os homens a morrer os estaria ensinando a viver.) Dicearco escreveu um livro com esse título, mas por outro motivo, menos útil."

Dicearco era um filósofo peripatético, e o livro dele, The Perishing of Human Life (O perecer da vida humana), não sobreviveu, o que não deixa de ser apropriado. A versão curta da antologia de Montaigne seria uma coleção de últimas palavras famosas. Hegel, em seu leito de morte, disse "Apenas um homem me compreendeu", e depois acrescentou "e ele não me compreendeu". Emily Dickinson disse: "Preciso entrar. A neblina está aumentando." O filólogo Père Bouhours disse: "Je vas, ou je vais mourir: l'un ou l'autre se dit." (Livremente: "Em breve eu vou, ou em breve eu irei morrer: ambos estão corretos.") Às vezes, uma última palavra pode ser um último gesto: o de Mozart foi imitar o som dos tímpanos no seu Réquiem, cuja partitura inacabada estava aberta em sua cama.

Estes momentos são provas de morrer permanecendo fiel ao personagem? Ou existe algo intrinsecamente suspeito neles: algo de release para a imprensa, de comunicado para a Associated Press, de improviso preparado? Quando eu tinha dezesseis ou dezessete anos, nosso professor de inglês – não o que mais tarde se matou, mas aquele com o qual estudamos o Rei Lear e aprendemos que "Maturidade é tudo" – disse à turma, com acentuado toque de presunção, que ele já tinha escrito suas últimas palavras: ou melhor, palavra. Ele estava planejando dizer simplesmente: "Dane-se!"

Este professor tinha sido sempre cético a meu respeito. "Espero, Barnes", ele disse um dia, depois de uma aula pouco satisfatória, que você não seja um desses malditos cínicos de última fileira.” Eu, senhor? Cínico, senhor? Não – eu acredito em carneirinhos balindo e sebes em flor e bondade humana, senhor. Mas mesmo assim achei esta despedida planejada bem elegante, assim como Alex Brilliant. Nós ficamos: a) impressionados com a verve; b) surpresos por o babaca desse professor possuir um alto grau de autoconhecimento; e c) decididos a não viver nossas vidas de modo a chegar a esta mesma conclusão verbal. Espero que Alex já tivesse se esquecido disso quando se matou, por causa de uma mulher, dez anos depois.

Mais ou menos na mesma época, por uma estranha coincidência social, soube que fim tinha levado este professor. Ele sofrera um derrame que o deixou paralítico e sem fala. De vez em quando, recebia a visita de um amigo alcoólatra que – acreditando, como acontece com os alcoólatras, que todo mundo se sente bem melhor quando bebe – costumava contrabandear uma garrafa para dentro da casa de saúde e despejá-la na boca do velho professor, que olhava para ele de olhos arregalados. Será que houve tempo para dizer aquela última palavra antes de sofrer o derrame, ou ele pensava nela enquanto derramavam bebida por sua goela abaixo? Isso é suficiente para transformar você num maldito cínico de última fileira. "

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